Levantou-se sorrateiramente da cama, como fazia toda noite, esgueirou-se pelo quarto em direção ao banheiro. O ronco dele acobertava sua fuga. Sentia-se culpada, que mulher não se sentiria culpada por enganar o namorado? Mais do que isso, que ser humano estaria livre da vergonha frente à tão vil atitude, que de tão vil deixa abismado mesmo seu narrador.
A culpa não a detinha, nem o medo, tudo era parte de uma mágica e excitante experiência. Entrou no banheiro escuro, trancou a porta, ligou a fluorescente de cima do espelho; o perfume que sentia roubava-lhe o chão e virava gosto em sua boca ávida. E o desejo virou pressa. Abriu o armário com violência e rapidamente tinha em mãos - e da mão para a boca - seu tesouro.
E assim ela fez, noite após noite de prazer multicolorido, fresh, floral, amêndoas, própolis, e o preferido palmolive cor-de-rosa; todas as noites até a do dia 23 de abril, quando sucedeu tão extraordinária coincidência que fará quem quer que leia por em dúvida a veracidade de minha história.
Naquela noite fria o namorado, gripado que estava, acordou com o próprio ronco, as duas e trinta e seis da manhã levantou sonolento e com sede, dirigiu-se ao banheiro. Tinha este hábito - que a mulher detestava com todas as forças - de tomar água da pia - sempre que o fazia a mulher o via como um cachorro bebendo de uma poça.
Como se ainda quase dormisse, entrou sem perceber a luz acesa, muito menos a mulher sentada na privada com a boca lambuzada de sabonete e as embalagens violadas aos seus pés. A mulher estava em choque, por mais que já houvesse, em pânico, imaginado como seria a reação do marido ao seu secreto "apetite", nunca havia considerado tal acontecimento efetivamente possível.
Estava em pânico, tinha na mão um protex fresh meio mordido e antecipava a calamidade iminente. Foi nesse momento que o namorado deu por sua imóvel presença. Ele, atônito, estudava a cena como a uma fotografia, e quando a voz de seu espanto aprontava uma exclamação, ela disse, com voz e vontade cujas origens não percebia: "- quer?", estendendo-lhe na da mão esquerda a insólita iguaria.
Não sei se pelo susto, pelo sono, ou pela infinita capacidade que o namoro tem de absorver e normalizar internamente os absurdos, por maiores que sejam, o namorado tomou e provou o sabonete.
Não gostou. A mulher, boca e mãos ensaboadas, pensou: "mais me sobra".
http://emsimesmado.wordpress.com/2009/04/08/do-casamento/