quarta-feira, 9 de setembro de 2009

UMA VIDA A DOIS

Levantou-se sorrateiramente da cama, como fazia toda noite, esgueirou-se pelo quarto em direção ao banheiro. O ronco dele acobertava sua fuga. Sentia-se culpada, que mulher não se sentiria culpada por enganar o namorado? Mais do que isso, que ser humano estaria livre da vergonha frente à tão vil atitude, que de tão vil deixa abismado mesmo seu narrador.

A culpa não a detinha, nem o medo, tudo era parte de uma mágica e excitante experiência. Entrou no banheiro escuro, trancou a porta, ligou a fluorescente de cima do espelho; o perfume que sentia roubava-lhe o chão e virava gosto em sua boca ávida. E o desejo virou pressa. Abriu o armário com violência e rapidamente tinha em mãos - e da mão para a boca - seu tesouro.

E assim ela fez, noite após noite de prazer multicolorido, fresh, floral, amêndoas, própolis, e o preferido palmolive cor-de-rosa; todas as noites até a do dia 23 de abril, quando sucedeu tão extraordinária coincidência que fará quem quer que leia por em dúvida a veracidade de minha história.

Naquela noite fria o namorado, gripado que estava, acordou com o próprio ronco, as duas e trinta e seis da manhã levantou sonolento e com sede, dirigiu-se ao banheiro. Tinha este hábito - que a mulher detestava com todas as forças - de tomar água da pia - sempre que o fazia a mulher o via como um cachorro bebendo de uma poça.

Como se ainda quase dormisse, entrou sem perceber a luz acesa, muito menos a mulher sentada na privada com a boca lambuzada de sabonete e as embalagens violadas aos seus pés. A mulher estava em choque, por mais que já houvesse, em pânico, imaginado como seria a reação do marido ao seu secreto "apetite", nunca havia considerado tal acontecimento efetivamente possível.

Estava em pânico, tinha na mão um protex fresh meio mordido e antecipava a calamidade iminente. Foi nesse momento que o namorado deu por sua imóvel presença. Ele, atônito, estudava a cena como a uma fotografia, e quando a voz de seu espanto aprontava uma exclamação, ela disse, com voz e vontade cujas origens não percebia: "- quer?", estendendo-lhe na da mão esquerda a insólita iguaria.

Não sei se pelo susto, pelo sono, ou pela infinita capacidade que o namoro tem de absorver e normalizar internamente os absurdos, por maiores que sejam, o namorado tomou e provou o sabonete.

Não gostou. A mulher, boca e mãos ensaboadas, pensou: "mais me sobra".

http://emsimesmado.wordpress.com/2009/04/08/do-casamento/

2 comentários:

Cristiane Veiga disse...

Viva hábitos bizaros \o/

Pablo Di Marco disse...

hahahaha Muito boa! Casamento é isso! Cumplicidade! Se um come sabonete e gosta o outro come na parceria nem que não goste. Na vida a dois cada um se doa um pouco em prol do casal. Ela vê futebol com ele. Ele assiste comédia romântica com ela. Ela come um Xis bacon de boteco com ele. Ele come Suchi com ela. Os dois juntos comem sabonete! Imagina o sabor do sabonete PHEBO!